Os rumos da revolução, por Elisabeth Zorgetz

Elisabeth Zorgetz
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Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado. Assim disse Orwell, satisfazendo toda a ansiedade humana. Enquanto deixamos passar nossas vidas, dóceis entre os sóis, os paradigmas da história parecem não nos servir. Mas quando eclode a mínima fermentação social, a história é rapidamente resgatada, investida de valores, ensinamentos e apropriações. Contemporaneamente ou não, é comum ouvir o “nunca antes na história...”, suas capacidades de provar as boas e más intenções ou suas gloriosas citações. Em verdade, a história acessível oferece tudo a todos, é descaradamente diplomática. As experiências revolucionárias – que vividas por seus atores estarão sempre numa escala menor do que a história as dotará no futuro – são como ciclones tropicais, a arrastar, cegamente, princípios, determinações, ações e massas humanas. Não se põe ordem em algo que vem a questioná-la. A ordem, no entanto, está muito afastada da memória social, e ambas tem sido desprezadas como cúmplices de um mesmo crime. Os caminhos da revolta são encurtados como produto da corrosão da própria esperança, a qual não se julga pelo potencial violento das ações, mas pelo esgotamento criativo. Surpreendentemente, a exoneração das humanidades do rol científico na estrutura educacional brasileira, não veio, ainda, vingar-se no levante popular. A urgência, impaciência e situacionismo dessa conjuntura fizeram da história um item supérfluo durante o processo, como um disparate luxuoso.

A prerrogativa necessária para se controlar algo é conhecê-lo. Essa é a fase mais preocupante de qualquer revolução: o abandono paradigmático. Um paradigma é articulado como uma rede de compromissos ou adesões, conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais, compartilhadas entre indivíduos interessados em testá-lo. Mais difícil ainda que construir durante o processo revolucionário, é desconstruir. Observem que desconstruir, filosoficamente, não significa destruir. Pelo contrário, desconstruir é expor as peças e engrenagens da sedição, compreendê-las e encaixá-las novamente. Nessa mesma apreensão se julga a horizontalidade. Não muito distante dos terrores que as linhas de produção tem gerado ao trabalhador ao longo do assentamento capitalista no último século, o revolucionário que se torna mero operador da máquina de transformação social está sujeito a todos os males da instalação dos poderes. É preciso operar funcionalmente, mas só valerá a pena se conhecermos e soubermos transmitir todo o procedimento. Oportunizar a todos a mesma partida de entendimento é a tarefa dos grandes detentores, aí reside a verdadeira horizontalidade. Não há como se sustentar uma revolução meritocrática. Desconfortavelmente, tenho visto o presente, pleno de perversidades,  moldar e deixar impresso em memória, o passado. O manifestante, e, mais ainda, a juventude brasileira precisam estar alerta aos passos incautos que a nossa história política e social dá em direção ao precipício do corruptível, onde todas as boas idéias morrem. O momento da sublevação e demonstração do poder popular é ainda hoje, sem atrasos e prorrogações, sem donos e cativos. É urgente que os revolucionários do agora identifiquem seus adversários, e esses não respiram, comem ou falam. 

Existe algo além da trajetória de democracia nesse país. O que está além, aquém e acima de qualquer outro princípio humano por aqui é a proteção à propriedade privada. Em 1964, quando a propriedade privada foi ameaça por Jango, o Brasil não teve receios em sacrificar sua democracia e liberdade para proteger a propriedade privada. Hoje, após doze anos de esforço hegemônico do Partido dos Trabalhadores, fortalecido no seio da retomada democrática, o país ainda é refém da propriedade privada, e de um modo ainda mais avassalador. Foi um golpe tão duro aos crentes da revolução, que iniciamos a cisão e famigerada competição da esquerda brasileira. Aos reacionários que tremem, enraivados, à simples menção desse governo, é motivo para comemorar.

A esquerda brasileira, por sua vez, lamentou, traída e enjeitada. Mas munindo-se de todas as forças capazes de transformar a realidade, assim como pensou estar transformando 30 anos atrás. Clamar "Diretas Já" não garantiu a democracia. Agora sabemos com precisão o que queremos. Não apenas para esse país, mas para o mundo inteiro. Para a justiça, interessa a sentença. Já a história, sabiamente, costuma suspender os julgamentos porque entende que o conhecimento foge às condicionantes da ação. Relaciona-se intimamente com as frias e ríspidas verdades, produz a crítica que ninguém quer ouvir, é depreciada e aterrada. Mesmo assim, não se desvia da tarefa de inocentar o homem para vê-lo, algum dia, regenerar-se vigorosamente, soberano de si próprio. Um ofício admirável.

A autora Elisabeth Zorgetz é ilheense, membro do Coletivo Reúne Ilhéus, escritora e graduanda em História na UFRGS. É membro do Núcleo de História da Dependência Econômica na América Latina e trabalha a prospecção de estratégias focais de reforma agrária no sul da Bahia.